À Sombra das entrelinhas, 2001

A Inteligibilidade do mundo
Reflexões sobre a pintura de Inez Wijnhorst

«O Irreparável é o facto de as coisas serem como são, deste ou daquele modo, entregues sem remédio à sua maneira de ser. Irreparáveis são os estados de coisas, sejam elas como forem: tristes ou alegres, cruéis ou felizes. Como és, como é o mundo – é isto o Irreparável»
(Giorgio Agamben, A comunidade que vem)

A procura de compreensão do mundo sempre foi motivo de grandes movimentações anímicas, rítmicas e artísticas desde que o homem teve ao seu alcance os instrumentos necessários para ficar perplexo – a expressão anímica de estranheza perante aquilo que acontece – face ao existente, face àquilo que há e que nos toca, que se agarra à pele fazendo de nós aquilo que somos. A arte – esta é a tese – é a forma primordial de dar conta do mundo da vida, do mundo dos homens, desse mundo em que há dor e alegria, morte e nascimento, sofrimento e prazer, e em que aqueles que aí estão têm, como condição de possibilidade da sua existência, de dar expressão ao que há e ao modo como isso acontece no mundo. Porque de uma coisa nunca poderemos duvidar – nós os não instalados numa dúvida céptica que leva à concepção do mundo como uma mera projecção colectiva sem qualquer realidade subsistente -: o mundo existe e as coisas que nele existem e acontecem, aquilo que há, projecta a sua “sombra” no mundo construindo assim a paisagem da vida, exprimem-se no mundo e só em casos extremos – como o de Peter Schlemihl no seu acordo com o diabo – o que quer que seja perde a sua sombra, ou seja, perde a sua expressão.

Misteriosos continuam a ser os mecanismos que levam do mundo à arte e da arte ao mundo, esses mecanismos que levam o olhar – principal operador artístico aqui compreendido como atenção – a demorar-se sobre a realidade e sobre as manifestações da verdade e como esse olhar nos é devolvido sobre a forma de uma compreensão ou, melhor, numa forma bela. Numa famosa carta a Magda von Hattimberg de 17 de Fevereiro de 1914 diz Rilke «Sabes estou no encalço das coisas singulares. Gosto do Einsehen. Conseguirás medir comigo a maravilha de ‘compreender’ assim um cão, de passagem ( não entendo por isto o ficar lado a lado, a simples ginástica humana após a qual nos encontramos do outro lado do cão, fora dele, tendo-o utilizado como uma mera janela sobre o que há de humano atrás dele – não, não é isto) – mas penetrar bem no meio do cão nesse núcleo que o faz ser como é, nesse lugar onde Deus poderia ter-se sentado, acabado o cão, para surpreender as sua primeiras perplexidades, as sua primeiras descobertas, para se assegurar que o cão estava bem conseguido, que nada lhe faltava, que não seria possível fazer-se melhor. É possível permanecer um momento no centro do cão, na condição de se ficar alerta e de saltar para fora dele antes que o seu mundo se feche sobre nós, se não éramos cão dentro do cão, peridos para tudo o mais» Esta ginástica – quase acobrática – simultaneamente mental e intuitiva significa o penetrar no mais intímo das coisas, mas um penetrar que envolve a totalidade do nosso ser, todas as nossas faculdades, o entrar com a totalidade do nosso ser nisso que é a unidade mais própria de cada ser. Mas atente-se que esta ‘ginástica’ não está acessível a todos, ou seja, nem todos estão nesse estado de espírito a que Goethe e Wittgenstein chamam “disposição poética” em que o espírito se encontra num estado de total receptividade, na qual os nosso pensamentos parecem tão vivos como a própria natureza.

Dos anteriores passos é bom que fiquemos com o seguinte: tudo o que há projecta a sua sombra no mundo o que é mesmo que dizer que tem a sua expressão, que o movimento artístico é aquele que penetra a realidade mais intíma de cada ser e que o ânimo possui um estado em que se encontra de tal modo receptivo que se parece com aquilo que vê. A arte, de facto, é esse elemento subtil, essa unidade inegável em que os actos e os objectos são projectados. A pintura da Inez é, precisamente, herdeira desta compreensão, ela consegue através de passos de mágica apresentar imagens para a contemplação, construções destinadas aos ânimos ávidos de dar conta daquilo que há, a esses ânimos que encontram na contemplação o seu lugar natural. Obviamente, que existem outros aspectos a salientar: as formas, as cores, a composição, a técnica, etc. Mas aqui isso não nos interessa , interessa-nos antes assumir, e explicar porquê, a carga metafísica e compreensiva da pintura de Inez, essa carga que é fruto de inquietações, perplexidades, essa pintura que estando no mundo o questiona e procura encontrar relações entre aquilo que há e o entre os modos como tudo isso se exprime. É fruto de um espírito que tenta perceber – um a um – cada singular, cada identidade própria ou, para voltarmos a Rilke, um espírito no ‘encalço dos singulares’ que dá conta da estranheza de um mundo em que se morre e nasce, em que chora e se ri, em que uma vezes a felicidade habita e noutras só a solidão e a tristeza parecem ter lugar, um mundo que se louva vida e, simultaneamente, se lhe coloca voluntariamente um fim. Vemos os enforcados, os que choram, os que estão já a passar para outro lugar, mas também damos conta dos que riem, dos que fazem amor, dos que concebem vida, dos que amam. A conclusão da relação de Inez com o mundo fica melhor expressa com as palavras que o grande viajante de Rilke diz em discurso directo: «Reconheço tudo isto aqui e é por isso que tudo entra sem mais no meu intímo: tudo isto está em casa dentro de mim.» (Rilke, Cadernos de Malte Laudrids Brigge).

Chegamos assim a um ponto em que podemos assumir – iluminados por Wittgenstein – que a arte é expressão, ou seja, as obras de arte dependem da existência de uma visão do mundo como um todo e a arte surge como esforço de restituição do sentido do mundo e da vida, restitui aquilo que surge desconexo como um todo. É uma restituição que a um movimento de união de tudo quanto há, alia uma compreensão dos estados de coisas e da relação que com eles o homem estabelece. Podemos mesmo chegar a um limite e dizer que dadas estas premissas a conclusão enivitável é que a boa obra de arte é aquela que é expressão completa, ou seja, é aquela que possui como suas qualidade inerentes tudo quanto é necessário para exprimir, em absoluto, a vida e os homens a vivê-la. A arte é aquilo que confere ao mundo as suas cores, na indiferença cromática que vivem os factos, as coisas, os objectos. A arte surge como diferença devolvendo todos esses elementos em relação uns com os outros, com côr, com um determinado aspecto. Neste modo particular/peculiar – ainda que universalmente reconhecido – não há escolhas; inesperadamente uma qualquer coisa assume a forma necessária, assume uma forma expressiva e o artista sente-se obrigado a dar a ver aos outros isso, é como se, subitamente, num olhar tudo assumisse a forma do belo e dando uma cor e um determinado aspecto a tudo quanto há. Wittgenstein descreve muito bem o que é este olhar. Numa anotação ele diz que um certo dia o seu amigo Paul Engelmann lhe contou que por vezes olha para os papéis da sua secretária – cartas de amigos, uns vivos outros não, desenhos esquecidos, poemos inacabados – e «eles aparecem-lhe tão explêndidos que ele pensa valer a pena torná-los acessíveis a outras pessoas […] Eu disse-lhe que isso seria mais ou menos como o seguinte: que nada poderia ser mais extraordinário do que ver um homem que julga não estar a ser visto, a realizar as suas actividades quotidianas […] subitamente estaríamos a observar um ser humano do lado de fora, de um modo como nós nunca nos poderemos ver a nós próprios; […] Isto seria, simultaneamente, maravilhoso e terrível […] vemos isso todos os dias sem nos causar a mais ligeira impressão! É verdade, mas nunca vemos desse ponto de vista. – Bem, quando E. olha para aquilo que escreveu e o acha maravilhoso ele está a ver a sua vida como uma obra de arte criada por Deus e, enquanto tal, é certamente digna de contemplação, tal como a vida de todos os dias e tudo o mais. Mas só um artista pode representar dessa forma uma coisa individual, de modo a que ela nos surja como uma obra de arte […] Quase se pode dizer que uma obra de arte força-nos a vê-los (aos papéis e tudo o que se pode ver nessa perspectiva) na perspectiva correcta, na ausência da arte, o objecto é só um fragmento da natureza como outro qualquer» (L. Wittgenstein, Culture and Value).

A arte é um movimento em que simultaneamente nos afastamos e nos aproximamos do mundo. Afastamos dada a necessidade de uma pausa metódica, a pausa que permite detectar as relações, as diferenças, o afastamento necessário ao ânimo para poder tomar posse dos seus objectos, tomar posse das energias do mundo e das suas coisas. Finalmente, proximamo-nos vertiginosamente porque no final, quando defrontados com o “produto final” ou, para voltar a Wittgenstein, com a “expressão completa” o mundo encontra a sua apresentação mais fiel, uma sua apresentação que não destrói o que nele há com teorias, classificações e conceitos abstractos destituídos que qualquer conteúdo de vida. No final a obra de arte passa a ser Natureza, passa a figurar como coisa do mundo – o que põe logo à vista o seu carácter peculiar: uma compreensão/apresentação do mundo que mal está conluída passa a figurar como mundo (o mesmo se passa com a história ou com os actos passados de cada um), como objecto natural. Podemos perceber melhor se atentar-mos à Máxima e Reflexão 872 de Goethe «No mundo há muito de belo. Mas é ao ânimo que compete a descoberta de ligações e, consequentemente, a produção de obras de arte.» É por esta razão que podemos dizer que a verdadeira mediadora entre o mundo e o homem é a arte, essa «actividade séria, extramamente séria, que se ocupa de assuntos nobres, sagrados.» (Goethe, Máximas e Reflexões §899). É daqui que nasce a obrigação do artista, a obrigação de aceitar o convite irrecusável de fazer coincidir a compreensão com o mundo, a arte com as relações existentes ou como diz Goethe «fazer coincidir a palavra com a coisa sentida, contemplada, pensada, experimentada, imaginada ou produzida pela razão» (Máximas e Reflexões §388).

Todas estas reflexões acerca da arte, do artistas e dos homens com a arte são fruto de um olhar que encontra na pintura de Inez precisamente isto que diz. Como não sentir que é do mundo de que se está a falar quando olhamos bem para a tela Lençol de Água? Como não sentir aí a presença da memória, do mundo, da necessidade de dizer que está perto do mundo numa tentativa imparável de chegar cada vez mais perto da sua realidade mais intíma. Como não ver no Inverno Rigoroso a mesma perplexidade que Wittgenstein percebe ao falar dos simples papéis e objectos do seu amigo Engelmann? Aquilo para que quisemos chamar a atenção foi para o rigor de um trabalho que procura a verdade daquilo que apresenta, um rigor só possível quando se toma em mãos a tarefa babilónica de compreender o mundo e apresentar essa compreensão. Penso, e creio não estar errado, que é de tudo isto que o trabalho de Inez nos fala, que são todos estes aspectos que ela, de uma forma muito mais ordenada, nos quer colocar mesmo à frente dos olhos obrigando-nos a fazer avanços e recuos no tempo, a relembrar e a reviver a nossa própria vida sobre o risco de se não o fizermos sair da encontro com as suas telas sem nada mais a não ser uma casca vazia, uma forma estética e sem nenhuma experiência decisiva. Dá trabalho ver estes quadros, obriga a ir ao fundo da vida, a essa amálgama de pensamentos, emoções, experiências e realizar um ‘face a face’, não o fazer é possível: cabe a cada um essa decisão. Os sinais foram erigidos e estamos numa situação paradoxal em que somente nos foi feito um gesto, um sinal, tratam-se de sugestões, não determinam qualquer caminho ou fixam qualquer compreensão/leitura: encontrar ou não encontrar o melhor caminho para se chegar ao que se quer, estamos naquela situação que Wittgenstein identifica a propósito da relação entre escritor/leitor: «é como se eu me tivesse perdido e perguntado a alguém o caminho para casa. Ele diz-me que mo vai indicar e caminha comigo ao longo de uma estrada plana e agradável. Subitamente tudo isto pára. E então, o meu amigo diz-me “agora, a partir de aqui, tudo o que tens de fazer é encontrar o caminho para casa.» (Culture and Value).

Nuno Crespo
Lisboa, 2 de Setembro de 2001

Leituras

Angamben, Giorgio, A Comunidade que vem (La Comunita che Viene), trad. António Guerreiro, Editorial Presença, Lisboa, 1993
Chamisso, A. Von, A Maravilhosa História de Peter Schlemihl in “Contos dos Homens sem Sombra”, Ed. Estampa, col. Livro B, Lisboa, 1983
Goethe, J. W., Máximas e Reflexões (Maximen und Reflexionen) trad. José Miranda Justo in “Obras Escolhidas” vol. 5, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 2000
Rilke, Rainer Maria, Os cadernos de Malte Laudris Brigge (Die Aufzeichnungen des Malte Laudris Brigge) trad. Paulo Quintela, col. Metamorfoses, O Oiro do Dia, Porto, 1983
Ibidem, Ouvres 3 – Correspondence, trad. B. Briod, P. Jaccottet et P. Klossowski, Éditions du Seuil, Paris, 1976
Wittgenstein, Ludwig, Culture and Value (Vermischte Bermerkungen), trad. Peter Winch, ed. G. H. Wright, H. Nyman, Blackwell Publishers, 1994


agradecimentos:
Enes Arte Contemporânea
Nuno Crespo