A selva começa aqui, 2001

O murmúrio da floresta

Uma gota de seiva azul desce vagarosa pela casca queimada da árvore. O seu caminho rumo ao solo de cinzas na floresta, onde agora despontam pequenos sinais de vida, é sinuoso e labiríntico. A árvore magnífica, onde outrora se iluminava uma copa de chamas, mantém ainda majestosamente os seus dois pés paralelos, enraizados numa profusão de dedos e tentáculos subterrâneos. A todo momento poderá tombar. A queda inevitável para muitas das suas companheiras, no seu caso não se verifica. À volta da pequena gota azul, furando a casca, centenas de outras gotas se juntam e formam veios ondulantes e escorregadios. Nuvens de insectos rodeiam este fragmento do tronco, parecem esticá-lo em todas as direcções como se o tecessem com asas. Por fim, desprende-se e flutua no ar. Longe do olhar humano, para quem uma floresta incendiada é apenas um cemitério de cinzas, esta casca escurecida e golpeada, como um rosto antigo, ganha os contornos precisos de um vestido sonhado.
É um vestido voluntarioso, cheio de gavetas minúsculas e memórias de histórias para contar. O seu andar é gracioso, os passos provocam milhares de estalidos só audíveis pelas formigas e os seus olhos invisíveis arregelam-se a cada novo encontro, a cada flor que rebenta ao som do requiem que a floresta agora compõe. O vestido vê ao longe uma clareira iluminada por uma coroa insólita. Procura em todas as gavetas, dentro de si, uma jóia, em linguagem de árvore quer dizer que procura uma escada, e também uma cadeira e perdendo-se numa complexa teia sanguínea chega ao lugar desejado. Alguém deixou cair, por acaso, um pacote de esparguete e as formigas laboriosas arrastaram um a um todos os pauzinhos, de tal maneira que um trilho serpenteia o chão até desembocar na coroa inesperada e subtil, porta de uma cidade invisível, circundada de todos os pauzinhos que não conseguiram mergulhar nas profundezas. O vestido incha de surpresa e contentamento, senta-se na cadeira, abre cuidadosamente uma das gavetas e lá dentro coloca: uma pata de formiga, um pedaço do pacote e um pau de esparguete.

Não se pense que a arrumação é anárquica ou casual. Todas as conversas abandonadas na floresta, os livros esquecidos, as palavras gravadas na sua casca, com canivete e faca de gume afiado, pequenos segredos e até notícias maravilhosas mereceram uma anotação especial. Tudo arquivado para que a seu tempo o redemoinho interior faça erguer todas as lembranças e estas formem uma lenta onda de murmúrios.

Os mais incrédulos poderão dizer que um vestido de casca queimada não existe e a existir nunca poderia andar e pesar, tal coisa, hão de dizer, é apenas poesia, tudo palavras elegantes e compostas. O vestido não responde, ouve vê e cala, mas com os seus dedos de caracol, cheios de olhos que se levantam e encolhem, abre uma das suas gavetas e liberta a notícia de última hora: “Um grupo de cientistas descobrui que o buraco negro afinal é cor de rosa”.
Anoitece, a clareira ganha contornos difusos, a selva começa aqui. Toda a vigilância é pouca. Há cidades invisíveis que são teias de aranha, armadilhas de fio suave, belas e subtis. Há também gaiolas enferrujadas e ruidosas que dizem ser cidades mas os seus habitantes têm dentes nas mãos e desconhecem a altura. As árvores mortas continuam belas. Como todos os seres complexos, que respiram galáxias infintitas e palpitam cartografias minuciosas, os seu crescimento é lento, enraizado, feito em camadas de imprevisto e pautas orquestradas. O vestido regressa à sua árvore e como se fosse uma mão aproxima-se mansamente da antiga morada, quer sentir ainda as espirais girando todos os cantares de pássaros que ali se ouviam. Ligadas ao coração do mundo, subterrâneo e desconhecido, todas as árvores sabem histórias de quem as pintou, de quem as contou, de quem as amou. Um halo transparente e rosado desprende-se da pele nua e queimada e à sua volta muitos outros fumos incandescentes se soltam, cada um com a sua cor e luminosidade própria.

A casca é uma pele, um órgão sensível a todas as escritas e a todas as falas e ao mesmo tempo é um bordado, um sussurro de fragmentos, a espuma de uma onda gigange que se quebrou indomável. A casca da árvore é um vestido habitado por uma cosmogonia invisível mas legível, tudo depende de quem sabe ouvir, ver, calar e crescer.

Com a noite, a floresta queimada nunca foi tão escura, as gotas de seiva azul, laranja, verde, vermelho, amarelo, brilham e engrossam como um caudal que vai desaguar a um mar longínquo. A selva começa aqui e há muitos rostos amordaçados esvoaçando como insectos sem asas. Certa vez, a casca-vestido-de-gavetas guardou um insecto insignificante, um simples pau, um cano simplório sem asas. Deu-lhe de comer e, no dia seguinte , já o bicho crescera para o dobro e, uma semana depois, tendo-se reproduzido sozinho, desmultiplicara-se em dezenas de seres que foi preciso expulsar, sob pena de destruírem o vasto horizonte.
Quando conheci a Inez, conversamos em frente a uma vitrine na rua, a partir da qual se viam os seus grandes quadros da última exposição. A primeira impressão que tive era que só uma abelha poderia construir uma estrutura tão minuciosa e intrincada ao ponto de estas pinturas parecerem teares ou teias habitadas. Foi nesse preciso momento, que reparamos numa minúscula aranha fixada no vidro em frente a um dos quadros. “Se calhar anda à procura de uma nova morada” disse Inez. “Se calhar pensa que encontrou nos teus quadros o palácio sonhado”, acrescentei. Depois seguramos o fio de Ariana, perdemo-nos debaixo de uma mesa e descobrimos que o Minotauro não passa de uma rocha com mel por cima.

Susana Neves
Lisboa, 9 de Novembro 2001


agradecimentos:
Galeria Jorge Shirley, Porto
Susana Neves